O responsável pelas “secretas” europeias acredita que a invasão russa da Ucrânia mudou a forma como pensamos e usamos os serviços de informações e defende que a UE pode fazer mais nessa área – e que os Estados-membros estão disponíveis para isso.
Daniel Markić foi nomeado há poucos meses diretor do Centro de Situação e Inteligência da União Europeia (EU INTCEN), o mais próximo que existe de um serviço de informações europeus, após nove anos à frente das secretas croatas.
Na dependência da Alta Representante para a Política Externa, Kaja Kallas, o INTCEN – que foi anteriormente dirigido pelo português José Casimiro Morgado – tem a missão de monitorizar o que acontece dentro e fora da UE e fornecer análises e alertas às instituições, decisores e Estados-membros na área da segurança, defesa e contra terrorismo.
De agem por Lisboa para participar numa conferência inserida nas comemorações dos 30 anos do Serviço de Informações Estratégicas e de Defesa (SIED), deu uma entrevista exclusiva ao Nascer do SOL e à Euronews na qual identifica as principais ameaças à segurança da União Europeia (UE), a cooperação entre serviços de informações e explica o que considera ser o futuro do setor.
Qual o papel do INTCEN na UE?
Nos últimos 20 anos o INTCEN tem sido uma espécie de centro de fusão de informações da União Europeia. Costumava fazer parte do Conselho, mas com as diferentes reformas das instituições agora faz parte do Serviço Europeu de Ação Externa (SEAE). As pessoas que trabalham no INTCEN provêm na maioria dos serviços de segurança e de informações dos Estados-membros e trabalhamos de forma muito próxima com as informações militares [EUMS Intelligence Directorate], sob um chapéu informal chamado SIAC, Single Intelligence and Analysis Capacity – e funciona muito bem. Mas agora achamos que o que está a ser feito em termos de informações pode não ser suficiente.
Porquê?
Temos de fazer mais. A UE compreendeu há uns anos que não é apenas um ator político e económico global, mas que é potencialmente um ator em termos de segurança. Em 2020 foi feita a primeira análise de ameaças, nomeadamente pela SIAC. Ela foi revista em 2022 e fizemos uma terceira versão há uns meses. Isso prova que a UE estava a tentar pensar sobre as ameaças para encontrar soluções para as enfrentar.
Está a falar de ameaças civis ou militares? Porque quando pensamos em ameaças militares pensamos também na NATO.
Globalmente, sobre todas as ameaças. E depois existe o famoso documento estratégico, a Bússola Estratégica [documento aprovado em 22 de março de 2022 que fornece orientações e uma visão comum para reforçar a política de segurança e defesa da UE até 2030], que descreve, mais uma vez, a capacidade da UE. E_é aí que encontramos uma pequena parte do documento que refere o SIAC como sendo o único ponto de entrada de informações estratégicas na UE. Temos que nos lembrar que em termos de informações, para os Estados-membros há um artigo importante no Tratado da União Europeia, o 4.2, que diz que a segurança nacional é uma competência dos Estados. Sabendo tudo isso, temos que encontrar maneiras de dar mais. A UE precisa de mais. E os Estados-membros estão disponíveis para dar mais.
Estão?
Sim, estão.
É que a partilha de informações foi sempre um tema sensível?
É sensível. Mas existe e funciona muito bem. Digo isto não apenas como diretor do INTCEN mas trabalhei os últimos nove anos como diretor de um serviço nacional de informações e segurança. E funciona. Mas quando há uma sensação de que os serviços não fazem o suficiente com frequência é porque eles não comunicam o suficiente. Temos de dar mais visibilidade às informações. Mas para completar o que disse antes, está tudo a ser feito, e obviamente tornou-se mais do que uma necessidade quando olhamos para as ameaças, a mais óbvia de todas é fevereiro de 2022 e o brutal ataque da Rússia à Ucrânia.
Acredita que esse ataque mudou a forma como a recolha e partilha de informações é vista no processo de decisão da UE?
Sem dúvida. E um dos melhores exemplos não está necessariamente na UE. Os serviços secretos dos EUA e a comunidade de serviços secretos do Reino Unido começaram a comunicar informações publicamente, o que é uma mudança importante. Isso é algo com que os Estados-membros e a UE têm muito a aprender.
Isso foi também uma tentativa de ação preventiva. Como que dizendo ao outro lado “sabemos que estão a fazer isto, por isso não o façam’.
Exatamente.
E não funcionou.
Não funcionou mas... concordo consigo. E há muitas opiniões diferentes na comunidade dos serviços secretos. Não é segredo. Muitos serviços da UE estavam convencidos de que [a invasão] não aconteceria. Quando aconteceu, muitas pessoas ficaram surpreendidas. Mas se tentarmos refletir sobre as mensagens enviadas pelos nossos amigos do Báltico, eles disseram-nos. Só tínhamos de os ouvir. Putin foi muito claro em todas as intervenções. E o mesmo se a com outras partes da Europa, por exemplo nos Balcãs Ocidentais. Pessoas como Putin têm tanto orgulho nas suas informações. Ele está tão orgulhoso do seu próprio ado nos serviços secretos... Na UE a inteligência é um pouco... uma palavra suja. Quando se fala de informações, sussurra-se. Não se deve sussurrar. Quando nos encontramos com o chefe dos serviços secretos, não temos de nos encontrar com ele à noite. Tem-se uma reunião normal. Os serviços secretos nunca serão a ferramenta principal de qualquer decisor político, mas são uma das ferramentas específicas importantes que ele tem. E penso que os decisores da UE também têm de a ter. Por isso, temos de encontrar formas de lhes fazer chegar a informação. É importante referir que, mesmo nas instituições europeias, existem pessoas brilhantes a trabalhar em questões de segurança. Mas as informações é uma área muito específica. Utilizam-se técnicas específicas, meios específicos para obter informações.
Que o INTCEN não pode fazer.
Sim. Mas temos uma comunidade muito forte de 27 Estados-membros. Uma das especificidades da segurança e dos serviços de informações na UE – e talvez por isso às vezes seja um pouco difícil –, é que há grandes diferenças. Quando olhamos para qualquer instituição dos Estados-membros, para os ministérios, estes são semelhantes ou iguais em todos os países. O ministério da Agricultura em Portugal é semelhante ao da Alemanha. Ou o da Defesa. A comunidade de segurança e de informações é diferente. Todos têm um quadro jurídico diferente.
E diferentes capacidades e possibilidades. Há coisas que os ses podem fazer que os portugueses não podem.
Exatamente. Mas temos a capacidade de aproveitar o melhor de cada serviço para o bem comum. É esse o papel do INTCEN e do SIAC. Quando era chefe da minha agência nacional, trabalhava diretamente para o Presidente e para o Primeiro-Ministro, o que não é fácil, como deve calcular. Mas para mim, se temos informações, é para agir, para as utilizar ou para reagir. Ter informações só para a base de dados é inútil. O mesmo se a na UE. Precisamos de dar a informação ao decisor, especificamente à Alta Representante para a Política Externa Kaja Kallas, mas também à Presidente von der Leyen e ao Presidente António Costa. Todos esses atores têm de ter os dados certos, no momento certo, durante o processo de tomada de decisão. A UE é um ator forte.
Como age quando há um conflito de informações enviadas por diferentes países?
Em termos de informações não é algo que aconteça com frequência. Podemos ter posições diferentes, uma decisão política diferente. Mas em termos de informações em bruto isso não acontece muitas vezes. Além disso, a UE tem uma especificidade. A inteligência na UE não está tão estruturada como na NATO, especialmente desde a reforma dos serviços de informações realizada há 10 anos na NATO. Mas temos uma vantagem. Não precisamos necessariamente que as informações sejam concordantes entre todos os Estados. Temos de ter a capacidade de utilizar a informação fornecida por um serviço, uma comunidade ou um grupo de serviços e utilizá-la. E é isso que estamos a fazer.
Consegue avaliar se havia diferenças na forma como intelligence era vista antes e depois da invasão russa da Ucrânia?
Houve definitivamente uma mudança. E, mais uma vez, voltando ao facto de as informações estarem à vista de todos e à necessidade de as utilizar. Esta agressão, que não é apenas uma guerra, é um choque civilizacional a longo prazo, mudou a forma como pensamos os serviços de informações e usamos os serviços de informações.
O relatório Niinistö [sobre fortalecimento da preparação e prontidão civis e de defesa da Europa]defendeu a necessidade de fortalecer a partilha de informações.
No relatório encontra uma parte sobre a SIAC. O relatório foi um grande esforço para encontrar uma nova solução que analisasse as novas ameaças. Um dos problemas prendia-se, de facto, com o facto de os serviços não serem suficientemente visíveis. E é esse o problema. E é por isso que, na minha comunicação com todos os serviços, como fiz ontem no vosso serviço externo, falei da necessidade de comunicar mais. O meu serviço, quando assumi funções há nove anos, era muito bom, mas muito fechado, sem comunicação, pelo que a imagem não era muito boa. Mudámos isso através de iniciativas diferentes. Fizemos um relatório público, comunicámos por vezes com os meios de comunicação social. Penso que é o que a comunidade deve fazer na Europa. Portanto, mais uma vez, a substância será sempre para o decisor. Mas o facto de cooperarmos, de termos informações – não é só o outro lado [que as tem], o que quer que eles façam, nós podemos fazer ainda melhor –, temos de comunicar sobre isto.
Imagina que o INTCEN será uma espécie de Serviço de Informações Europeu?
É-me difícil dizer. Mais uma vez, voltaria ao famoso artigo 4.2 do Tratado da UE. Não me parece que vá acontecer porque fazer intelligence, especialmente no estrangeiro, requer para além do know-how, muitos elementos. No ambiente da UE, seria difícil. As instituições da UE são muito transparentes, como devem ser, mas ainda temos de aumentar a sensibilização para as questões de segurança. Organizar missões como essa a partir de algum lugar na UE parece-me difícil.
Temos ouvido falar muito sobre o fortalecimento da defesa europeia mas não temos ouvido falar na parte das informações.
Houve uma iniciativa de reforço das informações, que foi iniciada há três anos pelos Estados-membros, e estamos a trabalhar nisso. Criámos um documento conjunto sobre o reforço da SIAC, um documento conjunto do Alto Representante e dos Estados. Portanto, há uma iniciativa. É menos visível porque a defesa exige muito dinheiro. Em termos de informações, precisamos de mais dinheiro, mas não se pode comparar.
Quais são para si as principais ameaças à segurança europeia?
Em primeiro lugar voltarei ao tema da agressão russa: trata-se de um choque de civilizações, porque temos a agressão em si, temos as atividades hibridas russas, mesmo em Estados-membros da UE, que por vezes podem ser atividades cinéticas.
Sabotagem?
Entre outras.
De que género?
Relatámos atividades na Lituânia, os pacotes que explodiram no Reino Unido, algumas tentativas de assassinato e outras atividades. Talvez tenhamos tendência para esquecer, em primeiro lugar, os ciberataques. Os russos são especialistas em ataques cibernéticos, juntamente com os seus grupos criminosos. E espionagem. Em Bruxelas tentamos lembrar a todos a importância da segurança e que a espionagem existe.
Estatal ou industrial?
Todos os tipos, dependendo do ator. Temos a Rússia, mas também outros atores. E quando olhamos para o que aconteceu há alguns dias na Índia e no Paquistão, o que tem acontecido em África, podemos ver que há cada vez mais ameaças. Não mencionei o Médio Oriente, mas é óbvio que é importante. E não posso deixar de pensar na operação que os russos estão a realizar na Ucrânia e na reação do mundo, da UE, dos EUA: é óbvio que muitos atores estão a assistir a tudo nos últimos três anos e talvez se sintam tentados a fazer alguma coisa.
Podem pensar que se os russos podem fazer, eles também?
Definitivamente. E há tantos conflitos, tantas tensões, que o facto de [não se saber] quem é o principal ator que os pode travar também é um elemento.
Têm também um papel no combate à desinformação e propaganda?
Sim, não somos os únicos, há outros organismos na UE que estão a trabalhar nisso.
Tivemos um caso recente em Portugal durante o apagão. Em menos de uma hora havia uma notícia falsa a ser espalhada em grupos de WhatsApp e nas redes sociais atribuindo a falha de energia a um ciberataque russo.
Há uma tendência para fazer demasiadas atribuições e fazer de Putin um verdadeiro super-homem. Temos uma visão clara, mais uma vez trabalhando em conjunto com as 27 comunidades, do que a Rússia está a fazer e como o faz. Por isso é bom sermos claros e não tentarmos encontrar a Rússia atrás de cada pedra. Putin iria adorar. Teria de utilizar muito poucos recursos e usar apenas as redes sociais para mostrar a sua força.
Reparei que não mencionou o terrorismo como uma ameaça.
Por causa desta crise aguda não falamos de terrorismo, mas a luta contra o terrorismo é uma das principais tarefas dos serviços de segurança. Continua a ser sempre uma prioridade, mas algumas crises são agora mais visíveis.
Mas acredita que grupos como o Estado Islâmico ou a Al Qaeda ainda têm alguma influência nos corações e mentes de algumas pessoas na nossa comunidade?
Definitivamente. E nesse sentido, quando essas questões estão menos nos media, talvez haja menos jovens tentados a seguir os os desses movimentos. Mas existe e posso dizer-lhe que os serviços de informações na UE estão ativos nesse tópico.
Como vê a possibilidade do regresso à Europa dos combatentes terroristas estrangeiros e das suas famílias que anda estão em campos e prisões na Síria e Iraque?
É uma questão muito importante. Resta saber o que os EUA vão fazer na Síria, o que é que vai acontecer com as prisões.
Porque ainda há milhares de pessoas na Síria.
Exatamente. O que é que a Turquia vai fazer. Há muitas dúvidas, mas estamos todos a trabalhar nisso.
Deve haver uma posição comum entre os Estados-membros?
Acho que temos todos uma posição muito semelhante.
Há países que já repatriaram pessoas. Outros, como Portugal, não.
Sim, mas a diferença de números entre países pode ser enorme. Há países muito mais preocupados. Não só por causa do número de combatentes mas também das mulheres e crianças.
Se continuarem nos campos, essas crianças podem ser a próxima geração de terroristas?
Definitivamente. Diria só isso porque não gostaria de dar um ponto de vista político. Mas em termos de segurança, o que lhes pode acontecer é uma grande questão. Não só se ficarem mas mesmo se voltarem à Europa.
Uma última questão. Nesse grupo de 27 países, qual é para si o papel dos serviços portugueses?
Como diretor de um serviço nacional tinha relações muito estreitas com os diretores dos serviços portugueses. E estou muito grato ao meu antecessor na direção do INTCEN José Casimiro Morgado. Conhecemo-nos há muito tempo. Tudo o que faço agora é baseado no trabalho dele e estou muito grato por poder suceder-lhe. Sobre Portugal, falei ontem com o secretário-Geral do Sistema de Informações [Vítor Sereno] e com os dois diretores [Adélio Neiva da Cruz e Pedro Marinho da Costa]. Portugal, quando olhamos para algumas das potências da UE, é um país relativamente pequeno, com serviços relativamente pequenos, mas que são incrivelmente eficientes. E o alcance quase global é para mim absolutamente fascinante. A comunidade portuguesa dos serviços secretos pode dar muito e está a dar muito pela segurança europeia.
Por causa da língua?
Por causa da sua capacidade. Obviamente a língua, a história e os laços económicos têm influência mas o facto é que os serviços estão a ter resultados. Têm, na minha entidade, um papel muito importante.