Grande parte da capital do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, permaneceu debaixo de água esta semana, incluindo o aeroporto que permanece fechado “indefinidamente”. No meio de toda a tragédia, surge um relato, no mínimo, bizarro.
Um grupo de voluntários, que tem ajudado no salvamento de pessoas das enchentes no sul do Brasil, alega que foi enganado para participar numa operação de salvamento de crianças, mas que afinal era para retirar milhares de armas de fogo do aeroporto de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul.
Nicolas Vedovatto, um investidor de 26 anos, disse à agência de notícias Associated Press (AP) que ele e três outras pessoas descobriram, através de um grupo de WhatsApp criado para reunir voluntários, que era necessária ajuda para salvar crianças retidas no aeroporto inundado. Ofereceram o seu apoio e, em 7 de maio, conheceram uma mulher que se identificou como Vivian Rodriguêz numa bomba de gasolina, pouco antes da operação planeada, disse Vedovatto.
A mulher informou que, na verdade, trabalhava para a maior fabricante de armas do Brasil, a Taurus Armas, e que eles iam de fato resgatar armas do aeroporto. O primeiro impulso de Vedovatto, assim que tomou conhecimento da operação, foi desistir.
“Eu disse imediatamente: 'Não, espere um minuto, eu vim para resgatar crianças”, declarou. Rodriguêz respondeu que extrair as armas era importante para evitar que elas caíssem nas mãos de criminosos e que, se eles se recusassem a participar, seriam detidos temporariamente para evitar a fuga de informações. Por essa razão, Vedovatto e os colegas colaboraram.
Na entrevista com a AP, o voluntário partilhou um vídeo da referida operação, filmado com o seu telemóvel. As imagens mostram-no no armazém do aeroporto e num barco escoltado por um agente da Polícia Federal fortemente armado.
Uma fonte da segurança pública brasileira com conhecimento da operação disse à AP, na sexta-feira, que a Polícia Federal avisou a Taurus que detetou que alguns grupos criminosos tinham obtido informação que a carga com as armas estava no aeroporto inundado. A fonte, que falou sob condição de anonimato porque não estava autorizada a falar publicamente, confirmou a veracidade das imagens de Vedovatto e que os voluntários realmente participaram junto na operação com uma equipa da empresa.
Questionada pela AP, a fabricante Taurus confirmou que a operação ocorreu, mas disse desconhecer o envolvimento de voluntários e que iria investigar as alegações com as autoridades policiais. Tropas especiais da Polícia Federal, do Exército e das polícias estaduais foram mobilizadas para garantir a segurança, mas o manuseamento da carga em si ficou a cargo da Taurus, informou a empresa.
A Polícia Federal do Brasil - que supervisiona regularmente a segurança dos aeroportos do país e também coordenou a operação - disse à AP em nota que a Taurus e as pessoas contratadas pela empresa foram as únicas envolvidas na retirada das armas do aeroporto.
A operação foi noticiada pela primeira vez na semana ada pelo portal de notícias UOL, um dos maiores meios de comunicação online do Brasil.
O relato de Vedovatto foi publicado pela primeira vez na quinta-feira pelo ABC+, um site de notícias do estado do Rio Grande do Sul.
Ele disse à AP que Rodriguêz mostrou a ele e a outras pessoas a carteira de identidade da empresa. A Taurus recusou-se a confirmar se Rodriguêz era ou não uma funcionária. Mas Vedovatto mostrou imagens das redes sociais identificando o perfil da referida funcionária. O jovem voluntário também partilhou o seu número de WhatsApp e capturas de ecrã da conversa que teve com ela. A AP tentou contatar com a visada mas nunca obteve resposta.
Falsos pedidos de ajuda propagam-se pelas redes sociais
Enquanto as inundações que devastaram o estado brasileiro do Rio Grande do Sul se mantêm, um outro flagelo espalha-se pela região: a desinformação nas redes sociais tem dificultado os esforços desesperados para levar ajuda a centenas de milhares de pessoas necessitadas.
Entre mensagens falsas que provocaram indignação como: “os órgãos oficiais não estão realizando resgates no estado mais ao sul do Brasil”, ou “a burocracia está a atrasar as doações de alimentos, água e roupas”, o boato persistente diz que “as autoridades estão a ocultar centenas de cadáveres”, apontou Jairo Jorge, autarca da cidade de Canoas, duramente atingida.
Ary Vanazzi, autarca de São Leopoldo, disse que muitas pessoas ignoraram os avisos oficiais e, em vez disso, deram ouvidos às postagens nas redes sociais dizendo que os alertas do governo “eram apenas políticos tentando alarmar as pessoas”.
“Por causa disso, muitos não saíram de casa, nessa emergência. Alguns podem ter morrido por causa disso", disse Vanazzi à AP. “Por vezes, amos mais tempo a defender-nos das mentiras do que a trabalhar para ajudar a nossa população”.
O Brasil tornou-se um foco de desinformação antes das eleições de 2018, vencidas por Jair Bolsonaro. Durante a sua presidência, os adversários muitas vezes tiveram de se defender contra ataques digitais. Desde então, o Supremo Tribunal Federal lançou um dos esforços mais agressivos do mundo para acabar com as campanhas coordenadas de desinformação, liderado por um juiz controverso em particular, que está a supervisionar uma investigação sobre a disseminação de notícias falsas. Ordenou às plataformas de redes sociais que eliminassem dezenas de contas.
O exército foi poupado de ataques online durante a presidência de Bolsonaro, um antigo capitão que é um feroz opositor do seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva. Mas tornou-se um alvo da hostilidade da extrema-direita durante o governo Lula, com os utilizadores das redes sociais a atacarem os líderes militares por receberem ordens do presidente de esquerda, disse Alexandre Aragão, editor executivo da agência de verificação de factos “Aos Fatos”.
Vários vídeos publicados online insinuam que os soldados não estão a ajudar nos resgates. O exército e as agências locais afirmam que mobilizaram 31.000 soldados, policias e outros para resgatar mais de 69.000 pessoas e 10.000 animais e entregar toneladas de ajuda por via aérea e barcos. O governo federal do Brasil anunciou que vai gastar cerca de 51 mil milhões de reais (10 mil milhões de dólares) na recuperação, conceder crédito aos agricultores e às pequenas empresas e suspender o serviço da dívida anual de 11 mil milhões de reais do Estado.
“Essas notícias são preocupantes, pois não refletem a realidade”, disse o comando em comunicado à AP. O governo brasileiro, impulsionado pelas queixas dos militares, está a apelar às redes sociais para que impeçam a disseminação de desinformação, disse o Procurador-Geral da República, Jorge Messias, numa entrevista.
Até ao final de terça-feira, todas tinham manifestado vontade em cooperar - exceto a rede social X, de Elon Musk, segundo o gabinete de Messias. O dono da plataforma, Elon Musk, protestou recentemente contra as decisões de um juiz do Supremo Tribunal de restringir as contas dos utilizadores, acusando-o de amordaçar a liberdade de expressão e teceu elogios a Bolsonaro e aos seus aliados. A AP tentou obter um comentário dessa rede social, mas não obteve resposta ao e-mail enviado.
O enxame de desinformação num momento de crise equivale a uma “tragédia dentro de uma tragédia”, disse Messias. “Quando paramos tudo para responder a notícias falsas, estamos a desviar recursos públicos e energia do que realmente importa, que é servir o público.”
As falsidades são “orquestradas, com o objetivo de fazer com que as pessoas deixem de acreditar nos agentes públicos”, disse o presidente da câmara de Canoas. “Sempre que acontece uma catástrofe natural, há uma onda de solidariedade. Mas desta vez não há também uma onda de raiva causada pela desinformação”.
Especialistas alertaram para a possibilidade de cheias
Os especialistas tinham alertado que o estado do Rio Grande do Sul, no sul do Brasil, poderia enfrentar graves inundações, colocando em perigo milhões de pessoas. Foi o que sucedeu. Na última semana, cerca de meio milhão de habitantes foram forçados a abandonar as suas casas devido às cheias devastadoras.
As estradas ficaram intransitáveis, os estádios inundados e o aeroporto internacional de Porto Alegre foi encerrado “indefinidamente”.
O governador de Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, disse que as estimativas iniciais dos danos indicam que a reconstrução custará pelo menos 19 mil milhões de reais (3,7 mil milhões de dólares), de acordo com os relatórios.
Os últimos dados divulgados, dão conta de mais de 150 pessoas confirmadas como mortas pelas inundações, outras 97 estão desaparecidas e mais de 600.000 foram forçadas a abandonar as suas casas.