{ "@context": "https://schema.org/", "@graph": [ { "@type": "NewsArticle", "mainEntityOfPage": { "@type": "Webpage", "url": "/my-europe/2020/11/27/depois-do-silencio-como-a-irlanda-se-reergue-dos-escandalos-de-pedofilia" }, "headline": "\u0022Depois do sil\u00eancio\u0022. Como a Irlanda se reergue dos esc\u00e2ndalos de pedofilia", "description": "A Irlanda \u00e9 o pa\u00eds europeu com o maior n\u00famero de casos registados de pedofilia. Os abusos sexuais cometidos no seio da igreja cat\u00f3lica representam ainda hoje feridas em aberto numa sociedade em busca de justi\u00e7a e reconcilia\u00e7\u00e3o.", "articleBody": "No noroeste da Irlanda, as praias de Falcarragh convidam a um sossego buc\u00f3lico. Mas, por tr\u00e1s da aparente pacatez, a pequena cidade irlandesa escondeu durante anos uma dura realidade. Ao longo de d\u00e9cadas, dezenas de crian\u00e7as foram violadas. Os abusos foram cometidos por padres. Em agosto de 2018, o papa Francisco pediu publicamente, pela primeira vez, desculpa pelas atrocidades cometidas por padres da igreja cat\u00f3lica irlandesa. Nesse discurso proferido em Dublin, o sumo pont\u00edfice reconheceu \u0022o fracasso das autoridades eclesi\u00e1sticas em lidar adequadamente com estes crimes\u0022, que considerou serem \u0022uma fonte de dor e vergonha para a comunidade cat\u00f3lica\u0022. Para ouvi-lo eram esperados 500 mil fi\u00e9is, mas apenas 130 mil compareceram. Recuando quatro d\u00e9cadas, o Papa Jo\u00e3o Paulo II tinha sido recebido por um milh\u00e3o de crentes. A Irlanda \u00e9 o quinto pa\u00eds da Europa com o maior n\u00famero de cat\u00f3licos. A Igreja est\u00e1 enraizada na cultura do pa\u00eds, mas tamb\u00e9m nos lugares de poder. Historicamente, a religi\u00e3o tem estado na base das escolhas pol\u00edticas dos irlandeses. No entanto, desde 2002, v\u00e1rios relat\u00f3rios e investiga\u00e7\u00f5es evidenciaram mais de 15 mil casos de abuso sexual cometidos entre as d\u00e9cadas de 1960 e 90. Os abusos cometidos por membros do clero n\u00e3o s\u00e3o recentes. No entanto, as desculpas do Papa Francisco s\u00f3 chegaram em 2018. Demasiado tarde para alguns. Os \u0022Sobreviventes\u0022 Ap\u00f3s as centenas de suic\u00eddios que se seguiram aos abusos, as v\u00edtimas que, de alguma forma, conseguiram lidar com a situa\u00e7\u00e3o ficaram conhecidas como \u201cos Sobreviventes\u201d. Martin Gallagher \u00e9 um deles. Aos doze anos, foi abusado sexualmente por Eugene Greene, um p\u00e1roco em Donegal, no noroeste da Irlanda. \u0022Quando \u00e9ramos mais novos e fomos violados, n\u00e3o havia ningu\u00e9m com quem falar, em quem pud\u00e9ssemos confiar. Os padres, de quem n\u00e3o nos pod\u00edamos aproximar, riam-se de n\u00f3s e chamavam-nos mentirosos. N\u00e3o pod\u00edamos contar aos nossos pais, porque eles teriam de ir falar com os padres e os padres fariam o mesmo com eles. N\u00e3o pod\u00edamos contar aos guardas, porque os guardas e os padres e os professores eram todos amigos, eles uniam-se, por isso est\u00e1vamos sozinhos\u0022, conta Martin Gallagher. A mudan\u00e7a s\u00f3 viria a acontecer com a chegada de Martin Ridge \u00e0 sua vida. Ridge, um, foi o primeiro a ouvir a hist\u00f3ria de Martin. \u0022O Martin apareceu e come\u00e7ou a investigar o Eugene Greene. Isso deu in\u00edcio a uma nova p\u00e1gina na nossa vida, porque libertou muita press\u00e3o, ansiedade, depress\u00e3o, todos aqueles maus sentimentos que engarraf\u00e1mos durante anos. S\u00f3 o facto de falar com o Martin, tirou, logo no primeiro dia, um grande peso dos meus ombros, porque afinal algu\u00e9m me ia ajudar\u0022. Em 2008, Martin Ridge publicou \u0022Breaking the Silence\u0022 (em portugu\u00eas, \u201cquebrando o sil\u00eancio\u201d), um livro que conta a investiga\u00e7\u00e3o a Eugene Greene e \u00e0s queixas de abusos cometidos entre as d\u00e9cadas de 1960 e 90. O autor acusa a igreja cat\u00f3lica de ter optado por n\u00e3o fazer nada para impedir todos esses anos de abusos, apesar das m\u00faltiplas queixas apresentadas contra o padre. Ainda hoje o autor da investiga\u00e7\u00e3o se sente grato pela colabora\u00e7\u00e3o das v\u00edtimas e afirma ter ficado \u0022contente por estar l\u00e1 para eles, porque eles tamb\u00e9m me educaram e est\u00e3o a educar a sociedade. Estas pessoas s\u00e3o especialistas, porque sabem do que est\u00e3o a falar\u0022. A resposta da Igreja A hist\u00f3ria de Martin n\u00e3o \u00e9 um caso isolado. Na Irlanda, as alega\u00e7\u00f5es de abuso sexual dizem respeito a quase 14.500 crian\u00e7as e s\u00e3o relativas a crimes cometidos ao longo de d\u00e9cadas. O pa\u00eds \u00e9 um dos mais afetados na Europa por este fen\u00f3meno, em compara\u00e7\u00e3o, a Fran\u00e7a, Alemanha e B\u00e9lgica, onde v\u00e1rias centenas de queixas foram apresentadas desde 2010. A maioria das acusa\u00e7\u00f5es foi registada em Dublin, a maior diocese da Irlanda. Entre 1975 e 2004, doze padres foram respons\u00e1veis por dois ter\u00e7os das queixas apresentadas na capital. Para combater o fen\u00f3meno, a diocese criou em 2002 o servi\u00e7o de prote\u00e7\u00e3o de menores, juntamente com uma ag\u00eancia dirigida pelo Estado. Andrew Fagan \u00e9 o diretor e coordenador desse organismo desde 2010. Hoje, identifica as falhas da Igreja na resposta \u00e0s v\u00edtimas e reconhece que a atua\u00e7\u00e3o inadequada ou tardia acabou por afastar os fi\u00e9is da institui\u00e7\u00e3o. \u201cQuando se soube que os padres se tinham comportado de forma abusiva em rela\u00e7\u00e3o \u00e0s crian\u00e7as isso foi entendido como um problema para o padre, n\u00e3o como um problema para a crian\u00e7a, ou para outras crian\u00e7as. E durante muito tempo, n\u00e3o \u00e9 que as autoridades da diocese n\u00e3o tenham feito nada relativamente a essas situa\u00e7\u00f5es, fizeram coisas, mas todas elas estavam a tentar corrigir o padre e mand\u00e1-lo de volta, e n\u00e3o estavam centrados na crian\u00e7a, n\u00e3o deram prioridade \u00e0 seguran\u00e7a das crian\u00e7as. Portanto, apesar de muitas coisas terem mudado, n\u00e3o tenho a certeza de que a perce\u00e7\u00e3o se tenha alterado. Julgo que muitas pessoas ainda pensam que \u00e9 um pouco arriscado permitir que os seus filhos se envolvam nas atividades da igreja, por isso, diria que h\u00e1 muitos pais que tomaram a decis\u00e3o de se distanciarem da igreja\u201d, afirma. Padres adotam medidas para proteger crian\u00e7as Frank Reburn \u00e9 padre na par\u00f3quia de Glasnevin, situada no norte da capital. Como todos os padres na Irlanda, fez um teste psicol\u00f3gico antes de iniciar o trabalho na par\u00f3quia, al\u00e9m de p\u00f4r em pr\u00e1tica as diretivas da diocese sobre a prote\u00e7\u00e3o das crian\u00e7as. \u0022Se me encontrar com os pais, estando a preparar os filhos para o sacramento, para a confirma\u00e7\u00e3o ou para a comunh\u00e3o, explicamos-lhes que temos uma pol\u00edtica de salvaguarda da crian\u00e7a em a\u00e7\u00e3o aqui na nossa par\u00f3quia. Nenhum adulto fica sozinho com uma crian\u00e7a, especialmente aqui, na nossa pr\u00f3pria par\u00f3quia. Na nossa sacristia, nenhum adulto est\u00e1 sozinho, quando as crian\u00e7as est\u00e3o nas instala\u00e7\u00f5es asseguramos que est\u00e3o sob os cuidados de algu\u00e9m sob vigil\u00e2ncia e que tenha feito a forma\u00e7\u00e3o. Se tivermos sacerdotes visitantes, ou algu\u00e9m a entrar na nossa sacristia, s\u00e3o obrigados a inscrever-se. E tamb\u00e9m pedimos aos pais, aos tutores das crian\u00e7as, que n\u00e3o deixem os seus filhos ir \u00e0 casa de banho sozinhos, que fiquem l\u00e1, que fiquem na zona p\u00fablica, apenas para se certificarem de que os filhos est\u00e3o bem. Tem sido um cap\u00edtulo horr\u00edvel na hist\u00f3ria da igreja e nas nossas vidas, um cap\u00edtulo realmente horr\u00edvel. Por isso, estou realmente empenhado e farei tudo o que estiver ao meu alcance para garantir que nenhuma crian\u00e7a seja ferida nesta igreja\u0022. O caso do padre ped\u00f3filo que imitava Elvis O arrependimento da igreja deve-se tamb\u00e9m a outras graves revela\u00e7\u00f5es. Como a de Darren McGavin, de 48 anos, sobrevivente de abuso sexual. O seu agressor, Tony Walsh, encontra-se atualmente na pris\u00e3o por ter violado mais de 200 crian\u00e7as em Ballyfermot, o sub\u00farbio onde Darren cresceu no seio de uma fam\u00edlia violenta. Darren tinha sete anos quando Walsh foi ordenado. O padre era um fen\u00f3meno de popularidade na par\u00f3quia por fazer parte de um programa de talentos em que os sacerdotes cantavam chamado \u0022The All Priest Show\u0022. Tony Walsh fazia imita\u00e7\u00f5es de Elvis Presley. Um dia, fez uma visita aos pais de Darren. \u0022Ele foi a casa dos meus pais e disse-lhes que sabia do seu segredo obscuro. \u0022Agora sei que est\u00e1s a bater naquela crian\u00e7a e na tua mulher\u0022. Portanto, a partir da\u00ed, ambos os pais, adultos, aram a estar vulner\u00e1veis ao padre, na sua m\u00e3o, porque ele sabia o seu segredo. Foi a\u00ed que o padre sugeriu: \u0022eu tiro o vosso filho deste ambiente, porque j\u00e1 o estragaram, ele responde e o senhor bate-lhe ainda mais, n\u00e3o sabe como lidar com ele. Se ele vier comigo, posso ensinar-lhe o amor e posso servir nas missas da manh\u00e3, e vamos lev\u00e1-lo a lugares encantadores, tirar-lhe um pouco de press\u00e3o\u201d.\u202fPara algu\u00e9m, uma m\u00e3e de 5 filhos, com todos a enlouquecer, e um marido que estava l\u00e1 muito raramente e quando estava, estava a dar-lhe uma tareia, isso era fant\u00e1stico, \u201co meu filho est\u00e1 a salvo!\u201d. Mas as promessas de seguran\u00e7a e educa\u00e7\u00e3o cedo se tornaram numa rotina de tortura. \u0022E se eu vos dissesse que um rapazinho foi amarrado a uma mesa de caf\u00e9, preso pelas m\u00e3os aos tornozelos, e reparou numa vela acesa, uma vela fina, mas que para ele era apenas uma vela acesa? E enquanto me era dito que iria arder no inferno por toda a eternidade, fui violado com uma vela acesa\u0022. Foi aos doze anos, enquanto assistia a um document\u00e1rio sobre pedofilia, que Darren se apercebeu de que a rela\u00e7\u00e3o com o padre da par\u00f3quia n\u00e3o era normal. A partir desse dia, come\u00e7ou a ver uma pedopsiquiatra, com apenas um receio: o de que o juiz n\u00e3o acreditasse no seu testemunho durante o julgamento. No entanto, os pr\u00f3prios terapeutas tiveram dificuldade em lidar com o processo. \u0022A senhora deu-me um boneco e disse-me: 'Podes mostrar-me o que aconteceu?'. E eu disse: 'Quer que enfie a minha pila dentro do boneco \u00e0 sua frente?'. Ela disse: 'O qu\u00ea?'. E eu disse-lhe: 'Disse-me para lhe mostrar, ent\u00e3o quer que eu rasgue e monte o boneco?'. Ela disse: 'N\u00e3o, basta mostra-me'. Eu respondi: 'N\u00e3o compreendo, eu teria de o fazer, mas disse-me que estava errado. Por que \u00e9 que quer que fa\u00e7a algo de errado?\u202f N\u00e3o compreendo'. Ent\u00e3o, eles disseram: 'Isso faz sentido, nunca nos t\u00ednhamos deparado com uma situa\u00e7\u00e3o destas\u0022. E eu respondi: \u0022Que tal perguntarem-me o que aconteceu?'. Ent\u00e3o, \u00e0 medida que contava, tive, com 12 anos, de estar sempre a tirar o len\u00e7o e a perguntar: 'Est\u00e3o bem?', porque tinha acabado de os traumatizar. Para mim estava tudo bem, porque estava habituado \u00e0quilo\u0022. Hoje, enquanto terapeuta, Darren \u00e9 capaz de ajudar outras v\u00edtimas de abuso, sendo ele pr\u00f3prio um sobrevivente de cinco tentativas de suic\u00eddio. Faz parte dos 10% das v\u00edtimas que apresentaram o seu caso \u00e0s autoridades. Vaticano resiste \u00e0 mudan\u00e7a Em 2014, o jornal italiano Repubblica revelava que o Papa Francisco assinalou entre o clero, 2% de padres ped\u00f3filos, incluindo bispos e cardeais. Contudo, na investiga\u00e7\u00e3o conduzida pelo Spotlight , um peri\u00f3dico de Boston, Richard Sipe, psiquiatra e padre reformado, estimou que o n\u00famero era mais elevado, 6%. De acordo com o antigo cl\u00e9rigo, um ped\u00f3filo dentro da Igreja abusa de 250 v\u00edtimas ao longo da vida. Isto, - defende Sipe - no caso da Irlanda, representa 280 padres ped\u00f3filos para 70 mil v\u00edtimas; em todo o continente europeu, cerca de 11.200 padres podem ter violado mais de 2 milh\u00f5es e 800 mil pessoas. Os n\u00fameros ter\u00e3o levado a Igreja a encobrir os abusos. Colm O'Gorman, sobrevivente e diretor da Amnistia Internacional da Irlanda, luta todos os dias pela repara\u00e7\u00e3o dos danos causados. \u201cA forma como a igreja se comportou, a hipocrisia e a corrup\u00e7\u00e3o no cora\u00e7\u00e3o da igreja foram reveladas e isso levou as pessoas na Irlanda a rejeitarem a autoridade moral da igreja. Isto levou ao fim do dom\u00ednio pol\u00edtico da igreja aqui na Irlanda. \u00c9 sabido que durante d\u00e9cadas o Vaticano nos chamou mentirosos, que eles disseram que est\u00e1vamos a contar mentiras, que \u00e9ramos fantasistas, que esta era uma agenda anticat\u00f3lica, que n\u00e3o havia encobrimento. Ent\u00e3o agora o Papa diz que havia um encobrimento e \u00e9 suposto acharmos que ele \u00e9 \u00f3timo por reconhecer a verdade? Isso \u00e9 o m\u00ednimo\u201d. Tamb\u00e9m Marie Collins \u00e9 uma sobrevivente. Muito ativa na preven\u00e7\u00e3o de abusos e pornografia infantil na internet, foi um dos s\u00edmbolos da comiss\u00e3o para a prote\u00e7\u00e3o de menores criada em 2014 pelo Papa Francisco, para lutar contra o abuso sexual. Demitiu-se em 2017, cansada da resist\u00eancia do Vaticano. \u201cA comiss\u00e3o era constitu\u00edda por peritos fora da igreja, peritos em prote\u00e7\u00e3o de crian\u00e7as, de todas as \u00e1reas, reunidos para aconselhar o Papa, para trazer especialistas do exterior para a igreja. E eu alinhei, porque se a igreja estava a ser sincera com o objetivo de mudar, achei que devia trabalhar para ajudar. Mas descobri, ap\u00f3s alguns anos, que havia tanta resist\u00eancia no Vaticano para mudar. A import\u00e2ncia da prote\u00e7\u00e3o das crian\u00e7as foi realmente ignorada, foi mais uma quest\u00e3o pol\u00edtica\u201d. A recente decis\u00e3o, tomada pelo Papa Francisco, de levantar o segredo pontif\u00edcio sobre a pedofilia, mostra um desejo de transpar\u00eancia dentro do Vaticano. Agora, as queixas e testemunhos relativos a abusos sexuais nos arquivos da Santa S\u00e9, podem ser apresentados \u00e0s autoridades civis. A igreja \u00e9 obrigada a responder \u00e0s expectativas da sociedade. Irlandeses divergem da Igreja Em 2015, os irlandeses aprovaram em referendo o casamento homossexual. J\u00e1 em 2018, o pa\u00eds revogou a 8.\u00aa emenda da constitui\u00e7\u00e3o, para permitir o direito ao aborto. Quase 80% da popula\u00e7\u00e3o irlandesa \u00e9 cat\u00f3lica, mas estas s\u00e3o as mesmas pessoas que votaram a favor das duas reformas apesar de se oporem \u00e0s diretivas da Igreja. Os n\u00fameros real\u00e7am um paradoxo: a sociedade irlandesa permanece culturalmente cat\u00f3lica, mas est\u00e1 a afastar-se da igreja enquanto institui\u00e7\u00e3o. A tend\u00eancia pode ser observada em toda a Europa, o \u00fanico continente onde a popula\u00e7\u00e3o cat\u00f3lica diminuiu antes de come\u00e7ar a estagnar. Ap\u00f3s 20 anos, a Irlanda tenta sarar as feridas e melhorar a seguran\u00e7a das crian\u00e7as, muitas vezes sem a coopera\u00e7\u00e3o da Igreja. A li\u00e7\u00e3o \u00e9 importante, tendo em conta que outros pa\u00edses, como Austr\u00e1lia, Fran\u00e7a, Pol\u00f3nia e Estados Unidos est\u00e3o apenas na fase da revela\u00e7\u00e3o, em que as v\u00edtimas de abuso sexual no seio da Igreja s\u00f3 agora come\u00e7am a ser ouvidas. Todas estas vozes s\u00e3o testemunho da extens\u00e3o do fen\u00f3meno e aquela que tem sido a resposta recorrente da Igreja: o sil\u00eancio, ou mesmo a cumplicidade, como provam as recentes revela\u00e7\u00f5es do caso McCarrick, um arcebispo americano promovido por Jo\u00e3o Paulo II, apesar de consciente das acusa\u00e7\u00f5es de abuso sexual que pendiam sobre o cl\u00e9rigo. S\u00f3 anos mais tarde, em 2018, \u00e9 que McCarrick viria a ser demitido. As v\u00edtimas recorreram \u00e0s institui\u00e7\u00f5es p\u00fablicas para serem ouvidas, na esperan\u00e7a de, um dia, conseguirem encerrar o assunto. Hoje, Colm O'Gorman \u00e9 um homem sem \u0022f\u00e9 religiosa\u0022, mas diz haver um processo no qual tem uma \u0022f\u00e9 inabal\u00e1vel\u0022. O diretor da Amnistia Internacional da Irlanda diz estar certo de \u0022que por muito terr\u00edvel que seja o mal feito, por muito terr\u00edvel que seja a ofensa, que se estivermos preparados para o assumir, para o enfrentar com coragem, e com verdade, e com compaix\u00e3o, e com amor, e com o compromisso de avan\u00e7ar, ent\u00e3o a cura e a recupera\u00e7\u00e3o e o progresso n\u00e3o ser\u00e3o apenas poss\u00edveis, ser\u00e3o inevit\u00e1veis\u0022. J\u00e1 Marie Collins mant\u00e9m a f\u00e9 ainda se considera cat\u00f3lica, mas reconhece que a rela\u00e7\u00e3o com a \u0022igreja institucional\u0022 mudou. \u0022Perdi realmente toda a confian\u00e7a nela\u0022, lamenta. Mas \u0022o mais horr\u00edvel\u0022, afirma, \u00e9 \u0022viver em sil\u00eancio\u0022. Perante o avultado n\u00famero de v\u00edtimas e suic\u00eddios resultantes da pedofilia, a sobrevivente deixa o alerta: \u0022Para algumas v\u00edtimas, tem sido demasiado e t\u00eam posto termo \u00e0s pr\u00f3prias vidas, como sabemos. Portanto, temos de pensar nos pa\u00edses onde isto ainda est\u00e1 a acontecer, e pensar nessas crian\u00e7as\u201d. 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"Depois do silêncio". Como a Irlanda se reergue dos escândalos de pedofilia

"Depois do silêncio". Como a Irlanda se reergue dos escândalos de pedofilia
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De Dimitri Korczak & Euronews
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A Irlanda é o país europeu com o maior número de casos registados de pedofilia. Os abusos sexuais cometidos no seio da igreja católica representam ainda hoje feridas em aberto numa sociedade em busca de justiça e reconciliação.

No noroeste da Irlanda, as praias de Falcarragh convidam a um sossego bucólico. Mas, por trás da aparente pacatez, a pequena cidade irlandesa escondeu durante anos uma dura realidade. Ao longo de décadas, dezenas de crianças foram violadas. Os abusos foram cometidos por padres.

As nossas vidas não são tão normais como as das pessoas que não foram violadas. Estes abusos mudaram a nossa relação com a vida, a nossa relação com os outros, mentalmente.

Tem sido um fardo muito pesado de carregar ao longo de todo este tempo, mas, como vítima de abusos, fico contente por tudo ter sido revelado, por toda a gente saber. Toda a gente sabe, a igreja católica sabe e sempre o soube. Mas agora já não podem negar que o sabem, o que fizeram ao longo de anos e anos de silêncio, em vez de agirem quando sabiam que o abuso estava a acontecer.

Podiam ter salvado centenas de vidas e impedido a tortura de famílias e crianças. O seu silêncio destruiu mais vidas do que o que se pode imaginar
Martin Gallagher
Vítima de pedofilia

Em agosto de 2018, o papa Francisco pediu publicamente, pela primeira vez, desculpa pelas atrocidades cometidas por padres da igreja católica irlandesa. Nesse discurso proferido em Dublin, o sumo pontífice reconheceu "o fracasso das autoridades eclesiásticas em lidar adequadamente com estes crimes", que considerou serem "uma fonte de dor e vergonha para a comunidade católica". Para ouvi-lo eram esperados 500 mil fiéis, mas apenas 130 mil compareceram. Recuando quatro décadas, o Papa João Paulo II tinha sido recebido por um milhão de crentes.

A Irlanda é o quinto país da Europa com o maior número de católicos. A Igreja está enraizada na cultura do país, mas também nos lugares de poder. Historicamente, a religião tem estado na base das escolhas políticas dos irlandeses. No entanto, desde 2002, vários relatórios e investigações evidenciaram mais de 15 mil casos de abuso sexual cometidos entre as décadas de 1960 e 90. Os abusos cometidos por membros do clero não são recentes. No entanto, as desculpas do Papa Francisco só chegaram em 2018. Demasiado tarde para alguns.

Os "Sobreviventes"

Após as centenas de suicídios que se seguiram aos abusos, as vítimas que, de alguma forma, conseguiram lidar com a situação ficaram conhecidas como “os Sobreviventes”. Martin Gallagher é um deles. Aos doze anos, foi abusado sexualmente por Eugene Greene, um pároco em Donegal, no noroeste da Irlanda.

"Quando éramos mais novos e fomos violados, não havia ninguém com quem falar, em quem pudéssemos confiar. Os padres, de quem não nos podíamos aproximar, riam-se de nós e chamavam-nos mentirosos. Não podíamos contar aos nossos pais, porque eles teriam de ir falar com os padres e os padres fariam o mesmo com eles. Não podíamos contar aos guardas, porque os guardas e os padres e os professores eram todos amigos, eles uniam-se, por isso estávamos sozinhos", conta Martin Gallagher.

A mudança só viria a acontecer com a chegada de Martin Ridge à sua vida. Ridge, um, foi o primeiro a ouvir a história de Martin.

"O Martin apareceu e começou a investigar o Eugene Greene. Isso deu início a uma nova página na nossa vida, porque libertou muita pressão, ansiedade, depressão, todos aqueles maus sentimentos que engarrafámos durante anos. Só o facto de falar com o Martin, tirou, logo no primeiro dia, um grande peso dos meus ombros, porque afinal alguém me ia ajudar".

Em 2008, Martin Ridge publicou "Breaking the Silence" (em português, “quebrando o silêncio”), um livro que conta a investigação a Eugene Greene e às queixas de abusos cometidos entre as décadas de 1960 e 90. O autor acusa a igreja católica de ter optado por não fazer nada para impedir todos esses anos de abusos, apesar das múltiplas queixas apresentadas contra o padre.

Ainda hoje o autor da investigação se sente grato pela colaboração das vítimas e afirma ter ficado "contente por estar lá para eles, porque eles também me educaram e estão a educar a sociedade. Estas pessoas são especialistas, porque sabem do que estão a falar".

Durante muito tempo, não é que as autoridades da diocese não tenham feito nada relativamente a essas situações, fizeram coisas, mas todas elas estavam a tentar corrigir o padre e mandá-lo de volta, e não estavam centrados na criança, não deram prioridade à segurança das crianças
Andrew Fagan
Diretor do serviço de proteção de menores de Dublin

A resposta da Igreja

A história de Martin não é um caso isolado. Na Irlanda, as alegações de abuso sexual dizem respeito a quase 14.500 crianças e são relativas a crimes cometidos ao longo de décadas. O país é um dos mais afetados na Europa por este fenómeno, em comparação, a França, Alemanha e Bélgica, onde várias centenas de queixas foram apresentadas desde 2010.

A maioria das acusações foi registada em Dublin, a maior diocese da Irlanda. Entre 1975 e 2004, doze padres foram responsáveis por dois terços das queixas apresentadas na capital. Para combater o fenómeno, a diocese criou em 2002 o serviço de proteção de menores, juntamente com uma agência dirigida pelo Estado.

Andrew Fagan é o diretor e coordenador desse organismo desde 2010. Hoje, identifica as falhas da Igreja na resposta às vítimas e reconhece que a atuação inadequada ou tardia acabou por afastar os fiéis da instituição.

“Quando se soube que os padres se tinham comportado de forma abusiva em relação às crianças isso foi entendido como um problema para o padre, não como um problema para a criança, ou para outras crianças. E durante muito tempo, não é que as autoridades da diocese não tenham feito nada relativamente a essas situações, fizeram coisas, mas todas elas estavam a tentar corrigir o padre e mandá-lo de volta, e não estavam centrados na criança, não deram prioridade à segurança das crianças. Portanto, apesar de muitas coisas terem mudado, não tenho a certeza de que a perceção se tenha alterado. Julgo que muitas pessoas ainda pensam que é um pouco arriscado permitir que os seus filhos se envolvam nas atividades da igreja, por isso, diria que há muitos pais que tomaram a decisão de se distanciarem da igreja”, afirma.

Euronews
A esmagadora maioria dos irlandeses é católicaEuronews

Padres adotam medidas para proteger crianças

Frank Reburn é padre na paróquia de Glasnevin, situada no norte da capital. Como todos os padres na Irlanda, fez um teste psicológico antes de iniciar o trabalho na paróquia, além de pôr em prática as diretivas da diocese sobre a proteção das crianças.

"Se me encontrar com os pais, estando a preparar os filhos para o sacramento, para a confirmação ou para a comunhão, explicamos-lhes que temos uma política de salvaguarda da criança em ação aqui na nossa paróquia. Nenhum adulto fica sozinho com uma criança, especialmente aqui, na nossa própria paróquia. Na nossa sacristia, nenhum adulto está sozinho, quando as crianças estão nas instalações asseguramos que estão sob os cuidados de alguém sob vigilância e que tenha feito a formação. Se tivermos sacerdotes visitantes, ou alguém a entrar na nossa sacristia, são obrigados a inscrever-se. E também pedimos aos pais, aos tutores das crianças, que não deixem os seus filhos ir à casa de banho sozinhos, que fiquem lá, que fiquem na zona pública, apenas para se certificarem de que os filhos estão bem. Tem sido um capítulo horrível na história da igreja e nas nossas vidas, um capítulo realmente horrível. Por isso, estou realmente empenhado e farei tudo o que estiver ao meu alcance para garantir que nenhuma criança seja ferida nesta igreja".

O caso do padre pedófilo que imitava Elvis

O arrependimento da igreja deve-se também a outras graves revelações. Como a de Darren McGavin, de 48 anos, sobrevivente de abuso sexual. O seu agressor, Tony Walsh, encontra-se atualmente na prisão por ter violado mais de 200 crianças em Ballyfermot, o subúrbio onde Darren cresceu no seio de uma família violenta.

Darren tinha sete anos quando Walsh foi ordenado. O padre era um fenómeno de popularidade na paróquia por fazer parte de um programa de talentos em que os sacerdotes cantavam chamado "The All Priest Show". Tony Walsh fazia imitações de Elvis Presley. Um dia, fez uma visita aos pais de Darren.

"Ele foi a casa dos meus pais e disse-lhes que sabia do seu segredo obscuro. "Agora sei que estás a bater naquela criança e na tua mulher". Portanto, a partir daí, ambos os pais, adultos, aram a estar vulneráveis ao padre, na sua mão, porque ele sabia o seu segredo. Foi aí que o padre sugeriu: "eu tiro o vosso filho deste ambiente, porque já o estragaram, ele responde e o senhor bate-lhe ainda mais, não sabe como lidar com ele. Se ele vier comigo, posso ensinar-lhe o amor e posso servir nas missas da manhã, e vamos levá-lo a lugares encantadores, tirar-lhe um pouco de pressão”. Para alguém, uma mãe de 5 filhos, com todos a enlouquecer, e um marido que estava lá muito raramente e quando estava, estava a dar-lhe uma tareia, isso era fantástico, “o meu filho está a salvo!”.

(...) à medida que contava [o que aconteceu], tive, com 12 anos, de estar sempre a tirar o lenço e a perguntar: 'Estão bem?', porque tinha acabado de os traumatizar. Para mim estava tudo bem, porque estava habituado àquilo
Darren McGavin
Vítima de pedofilia

Mas as promessas de segurança e educação cedo se tornaram numa rotina de tortura. "E se eu vos dissesse que um rapazinho foi amarrado a uma mesa de café, preso pelas mãos aos tornozelos, e reparou numa vela acesa, uma vela fina, mas que para ele era apenas uma vela acesa? E enquanto me era dito que iria arder no inferno por toda a eternidade, fui violado com uma vela acesa".

Foi aos doze anos, enquanto assistia a um documentário sobre pedofilia, que Darren se apercebeu de que a relação com o padre da paróquia não era normal. A partir desse dia, começou a ver uma pedopsiquiatra, com apenas um receio: o de que o juiz não acreditasse no seu testemunho durante o julgamento.

No entanto, os próprios terapeutas tiveram dificuldade em lidar com o processo.

"A senhora deu-me um boneco e disse-me: 'Podes mostrar-me o que aconteceu?'. E eu disse: 'Quer que enfie a minha pila dentro do boneco à sua frente?'. Ela disse: 'O quê?'. E eu disse-lhe: 'Disse-me para lhe mostrar, então quer que eu rasgue e monte o boneco?'. Ela disse: 'Não, basta mostra-me'. Eu respondi: 'Não compreendo, eu teria de o fazer, mas disse-me que estava errado. Por que é que quer que faça algo de errado?  Não compreendo'. Então, eles disseram: 'Isso faz sentido, nunca nos tínhamos deparado com uma situação destas". E eu respondi: "Que tal perguntarem-me o que aconteceu?'. Então, à medida que contava, tive, com 12 anos, de estar sempre a tirar o lenço e a perguntar: 'Estão bem?', porque tinha acabado de os traumatizar. Para mim estava tudo bem, porque estava habituado àquilo".

Hoje, enquanto terapeuta, Darren é capaz de ajudar outras vítimas de abuso, sendo ele próprio um sobrevivente de cinco tentativas de suicídio. Faz parte dos 10% das vítimas que apresentaram o seu caso às autoridades.

Vaticano resiste à mudança

Em 2014, o jornal italiano Repubblica revelava que o Papa Francisco assinalou entre o clero, 2% de padres pedófilos, incluindo bispos e cardeais.

Contudo, na investigação conduzida pelo Spotlight, um periódico de Boston, Richard Sipe, psiquiatra e padre reformado, estimou que o número era mais elevado, 6%. De acordo com o antigo clérigo, um pedófilo dentro da Igreja abusa de 250 vítimas ao longo da vida. Isto, - defende Sipe - no caso da Irlanda, representa 280 padres pedófilos para 70 mil vítimas; em todo o continente europeu, cerca de 11.200 padres podem ter violado mais de 2 milhões e 800 mil pessoas.

(..) o Papa diz que havia um encobrimento e é suposto acharmos que ele é ótimo por reconhecer a verdade? Isso é o mínimo!
Colm O'Gorman
Vítima de pedofilia e diretor da Amnistia Internacional da Irlanda

Os números terão levado a Igreja a encobrir os abusos. Colm O'Gorman, sobrevivente e diretor da Amnistia Internacional da Irlanda, luta todos os dias pela reparação dos danos causados.

“A forma como a igreja se comportou, a hipocrisia e a corrupção no coração da igreja foram reveladas e isso levou as pessoas na Irlanda a rejeitarem a autoridade moral da igreja. Isto levou ao fim do domínio político da igreja aqui na Irlanda. É sabido que durante décadas o Vaticano nos chamou mentirosos, que eles disseram que estávamos a contar mentiras, que éramos fantasistas, que esta era uma agenda anticatólica, que não havia encobrimento. Então agora o Papa diz que havia um encobrimento e é suposto acharmos que ele é ótimo por reconhecer a verdade? Isso é o mínimo”.

Também Marie Collins é uma sobrevivente. Muito ativa na prevenção de abusos e pornografia infantil na internet, foi um dos símbolos da comissão para a proteção de menores criada em 2014 pelo Papa Francisco, para lutar contra o abuso sexual. Demitiu-se em 2017, cansada da resistência do Vaticano.

“A comissão era constituída por peritos fora da igreja, peritos em proteção de crianças, de todas as áreas, reunidos para aconselhar o Papa, para trazer especialistas do exterior para a igreja. E eu alinhei, porque se a igreja estava a ser sincera com o objetivo de mudar, achei que devia trabalhar para ajudar. Mas descobri, após alguns anos, que havia tanta resistência no Vaticano para mudar. A importância da proteção das crianças foi realmente ignorada, foi mais uma questão política”.

A recente decisão, tomada pelo Papa Francisco, de levantar o segredo pontifício sobre a pedofilia, mostra um desejo de transparência dentro do Vaticano. Agora, as queixas e testemunhos relativos a abusos sexuais nos arquivos da Santa Sé, podem ser apresentados às autoridades civis. A igreja é obrigada a responder às expectativas da sociedade.

Irlandeses divergem da Igreja

Em 2015, os irlandeses aprovaram em referendo o casamento homossexual. Já em 2018, o país revogou a 8.ª emenda da constituição, para permitir o direito ao aborto. Quase 80% da população irlandesa é católica, mas estas são as mesmas pessoas que votaram a favor das duas reformas apesar de se oporem às diretivas da Igreja.

Os números realçam um paradoxo: a sociedade irlandesa permanece culturalmente católica, mas está a afastar-se da igreja enquanto instituição. A tendência pode ser observada em toda a Europa, o único continente onde a população católica diminuiu antes de começar a estagnar.

Após 20 anos, a Irlanda tenta sarar as feridas e melhorar a segurança das crianças, muitas vezes sem a cooperação da Igreja. A lição é importante, tendo em conta que outros países, como Austrália, França, Polónia e Estados Unidos estão apenas na fase da revelação, em que as vítimas de abuso sexual no seio da Igreja só agora começam a ser ouvidas.

O mais horrível é viver em silêncio
Marie Collins
Ex-membro da comissão para a proteção de menores do Vaticano

Todas estas vozes são testemunho da extensão do fenómeno e aquela que tem sido a resposta recorrente da Igreja: o silêncio, ou mesmo a cumplicidade, como provam as recentes revelações do caso McCarrick, um arcebispo americano promovido por João Paulo II, apesar de consciente das acusações de abuso sexual que pendiam sobre o clérigo. Só anos mais tarde, em 2018, é que McCarrick viria a ser demitido.

As vítimas recorreram às instituições públicas para serem ouvidas, na esperança de, um dia, conseguirem encerrar o assunto.

Hoje, Colm O'Gorman é um homem sem "fé religiosa", mas diz haver um processo no qual tem uma "fé inabalável". O diretor da Amnistia Internacional da Irlanda diz estar certo de "que por muito terrível que seja o mal feito, por muito terrível que seja a ofensa, que se estivermos preparados para o assumir, para o enfrentar com coragem, e com verdade, e com compaixão, e com amor, e com o compromisso de avançar, então a cura e a recuperação e o progresso não serão apenas possíveis, serão inevitáveis".

Já Marie Collins mantém a fé ainda se considera católica, mas reconhece que a relação com a "igreja institucional" mudou. "Perdi realmente toda a confiança nela", lamenta. Mas "o mais horrível", afirma, é "viver em silêncio".

Perante o avultado número de vítimas e suicídios resultantes da pedofilia, a sobrevivente deixa o alerta: "Para algumas vítimas, tem sido demasiado e têm posto termo às próprias vidas, como sabemos. Portanto, temos de pensar nos países onde isto ainda está a acontecer, e pensar nessas crianças”.

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