O processo demorou anos e incluiu um casamento no Rio de Janeiro, visitas várias ao consulado português, viagens a Lisboa e uma declaração suspeita atribuída a um cidadão nacional que vive no Brasil.
A criação de uma nova identidade é talvez a mais importante preocupação dos chamados ‘ilegais’ russos – como são conhecidos os oficiais de informações que atuam na clandestinidade. Construída o a o, sem pressas que possam levantar suspeitas e com atenção a todos os detalhes, é essa história de cobertura – conhecida no meio como ‘lenda’ – que lhes irá permitir inserirem-se e arem despercebidos no ambiente social no qual são colocados para cumprirem uma missão, qualquer que ela seja.
Foi isso que Vladimir Aleksandrovich Danilov e Yekaterina Leonidovna Danilova, o casal de espiões russos que aram por Portugal com os nomes de Manuel Francisco Steinbruck Pereira e Adriana Carolina Costa Silva Pereira e cuja identidade foi revelada na semana ada pelo The New York Times, fizeram durante anos. Metodicamente. Com discrição. Construíram primeiro uma identidade brasileira e depois uma portuguesa. E teriam sido bem sucedidos se a invasão russa da Ucrânia não tivesse levado os serviços de informações ocidentais a desmantelar as células russas de espiões.
O primeiro registo que foi possível encontrar da presença de ambos no Brasil, já com as novas identidades, remonta a fevereiro de 2016. Nesse mês, Manuel Pereira, o nome falso de Vladimir Danilov, montou a empresa MP Collection, com sede num prédio da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, dedicado à compra e venda de antiguidades e artigos usados. Na mesma morada foi, mais tarde, registada em nome de Adriana Pereira uma empresa de comércio de objetos de arte. Mas só depois de os dois começarem a criar uma vida – e uma ‘lenda’ – em conjunto.
De acordo com os documentos consultados pela Euronews e o Nascer do SOL, a construção dessa vida teve início a 14 de abril de 2016. Na manhã desse dia, pouco depois das 10h, os dois entraram no Cartório do 12.º Registo Civil do Rio de Janeiro. Esperaram pela sua vez, entregaram os seus documentos de identificação e foram encaminhados para uma sala onde estava a juíza Salete dos Santos Norte.
Ele apresentou documentos que o identificavam como Manuel Francisco Steinbruck Pereira, nascido a 24 de novembro de 1985, filho de Ligia Steinbruck, natural do Rio de Janeiro e de um português, Camilo Pereira, natural de Vila Real. Já ela exibiu a documentação que a identificava como Adriana Carolina Silva Costa, nascida a 5 de junho de 1986, também no Rio de Janeiro, filha de Juan Castro e Maria Paes.
Perante a juíza declararam estar ali de livre vontade para celebrar o seu casamento. E na dos documentos, a mulher alterou o seu nome: mudou a ordem dos seus apelidos e adotou o nome de família do novo marido. ou então a chamar-se Adriana Carolina Costa Silva Pereira. O casal viveria então no tal prédio da Barra da Tijuca.
Portugal no caminho
aria mais de um ano até que o casal voltasse a dar um novo o nessa construção de identidade. A 23 de maio de 2017, Manuel Pereira deslocou-se ao consulado de Portugal no Rio de Janeiro para se registar e pedir a nacionalidade portuguesa. Para isso, de acordo com o assento de nascimento obtido pela Euronews e o Nascer do SOL na Conservatória do Registo Civil de Lisboa, apresentou um documento obrigatório para a aquisição da nacionalidade: um comprovativo do estabelecimento da filiação na menoridade, cuja declaração terá sido prestada perante um oficial público. Ou seja, foi apresentado um documento alegadamente assinado por Camilo Pereira a reconhecer legalmente a paternidade de Manuel Pereira.
Um antigo funcionário judicial que emigrou há muitos anos para o Brasil, onde teve três filhos, Camilo Pereira está hoje reformado e a viver no Rio de Janeiro. Nos últimos dias, a Euronews tentou á-lo por vários meios para perceber se alguma vez teve o com os dois espiões russos. Na sua morada em Lisboa, a família, um dos filhos e a nora, não quiseram falar sobre caso. Já o próprio, eliminou ou bloqueou as redes sociais após uma abordagem da Euronews e o Nascer do SOL.
O assento de nascimento de Manuel Pereira seria integrado na Conservatória dos Registos Centrais em Lisboa a 23 de janeiro de 2018. E só depois, o espião russo terá ado à fase seguinte do plano: obter a nacionalidade portuguesa para a mulher. De acordo com as informações recolhidas pela Euronews e o Nascer do SOL, foi nessa altura que o casal viajou pela primeira vez para Portugal. Chegaram em meados de fevereiro e ficaram até março, altura em que regressaram ao Brasil. A 26 de abril desse ano, pouco mais de dois anos após o casamento, o casal dirigiu-se novamente ao consulado de Portugal no Rio de Janeiro, desta vez para registar oficialmente o matrimónio.
Viajaram para Portugal uma primeira vez em outubro de 2018. Regressaram novamente em 2019, data em que também Adriana Pereira já era cidadã nacional nos termos do artigo 3.º, n.º1 da Lei n.º37/81 que permite ao estrangeiro casado há mais de três anos com um nacional português adquirir a nacionalidade portuguesa.
De acordo com o semanário Expresso, os dois arrendaram um apartamento na zona do Bonfim, no Porto. Terão entrado e saído de Portugal várias vezes, até que as suas identidades falsas foram desmascaradas.
O desmantelamento da célula de ilegais russos no Brasil começou quando um destes espiões foi exposto pelas autoridades americanas quando se preparava para assumir um lugar de estagiário no Tribunal Penal Internacional, em Haia. Alertados pela congénere americana, os serviços de informações holandeses impediram-no de entrar no país e enviaram-no de volta ao Brasil onde foi preso por falsificação de documentos. Tratava-se de Sergey Cherkasov, um oficial de informações russo que viajava sob o nome de Viktor Muller Ferreira e que tal como Manuel Pereira tinha nos documentos de identificação um pai português. De regresso ao Brasil, foi detido e condenado a 15 anos de prisão.
Terá sido a sua prisão que alertou a Polícia Federal para a possibilidade de existirem mais ilegais no Brasil. De acordo com o The New York Times, foi assim que foram descobertos os restantes oito membros da rede. Todavia, a Euronews sabe que não foram as autoridades brasileiras a informar o Serviço de Informações de Segurança da presença do casal russo em Portugal no verão de 2022.
Nessa altura, depois de os identificar, o SIS tomou duas atitudes. Primeiro informou a congénere russa de que os dois ilegais tinham sido revelados. Depois,como a Euronews já revelou, informou o Instituto de Registos e Notariado que cancelou os documentos de identificação e abriu um processo de averiguações para apurar como a nacionalidade foi obtida.
Essa informação foi colocada nos respetivos assentos de nascimento. No entanto, o processo não estará ainda terminado. “Quando há uma decisão ela tem de ser averbada. Se se concluir que o processo é nulo por ser falso fica averbado o cancelamento. Se se concluir que estava tudo bem no assento era dado sem efeito a abertura do processo”, explica um conservador que pediu para não ser identificado devido à sensibilidade do tema. A Euronews e o Nascer do SOL questionaram o IRN sobre o estado dos processos, mas não houve uma resposta.
Esta não foi a primeira vez que os serviços de informações russos usam ou tentam usar dados de identificação de cidadãos nacionais. Uma das funções dos espiões colocados, sob disfarce, nas embaixadas russas espalhadas pelo mundo é recolher informações sobre como os diferentes países registam e armazenam dados pessoais. Podem também tentar obter ilegalmente ou forjar documentos cujas informações serão rastreáveis para pessoas reais, vivas ou mortas, ou indivíduos que existem apenas no papel.
Foi o que aconteceu em Lisboa em 2013. Um funcionário da embaixada russa começou a deslocar-se com frequência à Conservatória dos Registos Centrais (CRC), em Lisboa, para se encontrar sempre com o mesmo funcionário, com quem se reunia durante períodos de tempo prolongados. O então diretor do IRN, António Figueiredo alertou o SIS, que enviou uma equipa para tentar perceber o que o funcionário teria andado a consultar. A visita dos espiões acabou por ser captada por equipas de vigilância da PJ que trabalhavam então nos vistos gold e causou polémica uma vez que o juiz Carlos Alexandre não acreditou nas justificações dadas por António Figueiredo para a presença dos oficiais de informações.
Depois destes episódios, o SIS realizou uma formação junto de dezenas de conservadores para alertar para o valor da informação guardada no IRN para potências estrangeiras.